sexta-feira, 29 de junho de 2012

Carta


      Já muitos anos se passaram. E nunca me dei ao trabalho de te escrever. Esta carta já tem destinatário, mas nunca serás tu. Talvez a lareira ou a sarjeta junto ao prédio. Mas nunca para ti. Porque tinha metade da minha altura atual quando percebi que era inútil te dizer o quer que seja. Nunca vens cá e quando vens, esperas ver outra pessoa. Outra pessoa que não é a tua filha. Quiseste tornar-me em algo que eu não era, mascarar-me com um semblante igual ao teu. Para que eu fosse um clone teu, sem cabeça nem personalidade própria.
      Abandonaste-me. A única coisa que me deixaste foi o teu nome. Disseste-me na cara que eu não era aquilo que esperavas, sem me dar uma explicação. Sem me deixares entender porquê. Fiquei a adivinhar. Anos passam-se e ainda desconheço a resposta.
      Talvez porque sou igual a ela. Os meus cabelos, a forma do rosto. De ti apenas restou o olhar determinado e destemido, como o meu avô sempre descreve. Peço perdão. Agora resta é eu realmente o desejar.
      Estou sempre aqui em cima, o mais longe possível da civilização. Deixaste-me sozinha e assim fiquei. O meu avô é maluco e deixa-me louca, mas não podia deixar de o amar. Ele mantem-me sã e acho que faz as suas maluqueiras para que eu me distraia e que não passe tanto tempo sozinha dentro de casa. Porque, por muito fortes e conselheiros que os espíritos sejam, eles nunca entenderão o meu problema. E nunca me ajudarão a ultrapassá-lo. E culpo-te por isso.
      Também sinto a falta dela. Mas, claro, nunca pensas nisso. Ela morreu e desenhaste uma linha a separar-nos sem me explicar o porquê. E isso deixa-me frustrada, porque não te posso ligar a contar os meus problemas, não posso chorar no teu ombro. Tenho que ser forte e suportar tudo sozinha, aquele peso nos ombros que só adultos carregam.
      Nunca me senti tão isolada como agora. Raparigas andam a passar aqui perto e olham-se com desdém. Porque sou estranha. Porque sou solitária. Não tenho ninguém com quem falar e não posso revelar estes pensamentos ao meu avô. Isso iria desanimá-lo e eu não toleraria tal cenário. Ele cuidou de mim quando tu não o fizeste, devo-lhe a felicidade que ele me prometeu. Mesmo que ela seja apenas uma mera fantasia. Que o meu temperamento volátil seja a única amostra de que eu avancei. De que a tua ausência já não me incomoda.
      Mas é claro que incomoda! Tenho catorze anos e não tenho pai. De ti, só tenho memórias de um homem que me tentou mudar e que, mal viu o fracasso, fugiu a sete pés como se eu fosse um brinquedo que se pudesse jogar fora após se fartarem.
      E, lá fora, todos me culpam por algo que eu não fiz. Sou desmoralizada e os poucos que não me odeiam, temem-me. E isso pesa-me na mente. Não gosto disto. Desta solidão que me impuseste. E deves perguntar-me como ultrapasso esta dor…
      …Esquece, é um autêntico disparate acreditar que alguma vez me mostrarias preocupação…
      Mas… se o fizesses…não me acalmaria antes de falar, como faço sempre. Faria o que qualquer rapariga da minha idade faria. Fugiria aos meus problemas e poria as culpas nos outros. Que importa a coragem e a responsabilidade para encarar os seus problemas? Uma pessoa como eu, sozinha com o meu cão e o meu avô lunático, não tem outra hipótese. É fugir ou arder na fogueira.
      E fico deprimida. Porque a culpa é tua. 
      Já escrevo esta carta há três dias. Mais gente passa aqui, mais gente me evita. Os rumores espalham-se tão depressa que já muita gente conhece a rapariga do prédio amarelo, que nunca saí de casa.
      Quando pego na caneta de tinta permanente, fico sempre a pensar no que irei escrever. E depois as palavras fluem rapidamente, como se estivessem apenas escondidas num canto obscuro da minha mente, à espera da oportunidade certa. É ai que descubro que dificilmente irei melhorar. Preciso estupidamente de ti. Tanto que tento afogar as minhas mágoas numa carta que acaba por ser hipoteticamente endereçada a ti. E, desta vez, irei assiná-la no fim e livrar-me dela. Uma lágrima caiu-me do olho, contaminando esta carta. Dando-me mais motivos para a queimar. De eliminar este traço de fraqueza.
      Porquê? Porquê? Porquê? Aonde é que eu falhei? Que espectativas esperavas de mim? Se eu soubesse, podia ser que melhorasse. Podia ser que talvez viesse a ser a menina do papá. Mas não. Decidiste abandonar-me, deixando sozinha com o espirito da minha falecida mãe, que me chama nos meus sonhos.”Rita, Rita!”. Mas ela não é real. Tu és! E não estás aqui.
      Deixas-te só e desamparada. Odeio-te por isso.
      E culpo-te por isso.

BY: Ana Santos

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