Já
muitos anos se passaram. E nunca me dei ao trabalho de te escrever. Esta carta
já tem destinatário, mas nunca serás tu. Talvez a lareira ou a sarjeta junto ao
prédio. Mas nunca para ti. Porque tinha metade da minha altura atual quando
percebi que era inútil te dizer o quer que seja. Nunca vens cá e quando vens,
esperas ver outra pessoa. Outra pessoa que não é a tua filha. Quiseste
tornar-me em algo que eu não era, mascarar-me com um semblante igual ao teu.
Para que eu fosse um clone teu, sem cabeça nem personalidade própria.
Abandonaste-me.
A única coisa que me deixaste foi o teu nome. Disseste-me na cara que eu não
era aquilo que esperavas, sem me dar uma explicação. Sem me deixares entender
porquê. Fiquei a adivinhar. Anos passam-se e ainda desconheço a resposta.
Talvez
porque sou igual a ela. Os meus cabelos, a forma do rosto. De ti apenas restou
o olhar determinado e destemido, como o meu avô sempre descreve. Peço perdão.
Agora resta é eu realmente o desejar.
Estou
sempre aqui em cima, o mais longe possível da civilização. Deixaste-me sozinha
e assim fiquei. O meu avô é maluco e deixa-me louca, mas não podia deixar de o
amar. Ele mantem-me sã e acho que faz as suas maluqueiras para que eu me
distraia e que não passe tanto tempo sozinha dentro de casa. Porque, por muito
fortes e conselheiros que os espíritos sejam, eles nunca entenderão o meu
problema. E nunca me ajudarão a ultrapassá-lo. E culpo-te por isso.
Também
sinto a falta dela. Mas, claro, nunca pensas nisso. Ela morreu e desenhaste uma
linha a separar-nos sem me explicar o porquê. E isso deixa-me frustrada, porque
não te posso ligar a contar os meus problemas, não posso chorar no teu ombro.
Tenho que ser forte e suportar tudo sozinha, aquele peso nos ombros que só
adultos carregam.
Nunca
me senti tão isolada como agora. Raparigas andam a passar aqui perto e olham-se
com desdém. Porque sou estranha. Porque sou solitária. Não tenho ninguém com
quem falar e não posso revelar estes pensamentos ao meu avô. Isso iria
desanimá-lo e eu não toleraria tal cenário. Ele cuidou de mim quando tu não o
fizeste, devo-lhe a felicidade que ele me prometeu. Mesmo que ela seja apenas uma
mera fantasia. Que o meu temperamento volátil seja a única amostra de que eu
avancei. De que a tua ausência já não me incomoda.
Mas
é claro que incomoda! Tenho catorze anos e não tenho pai. De ti, só tenho
memórias de um homem que me tentou mudar e que, mal viu o fracasso, fugiu a
sete pés como se eu fosse um brinquedo que se pudesse jogar fora após se
fartarem.
E,
lá fora, todos me culpam por algo que eu não fiz. Sou desmoralizada e os poucos
que não me odeiam, temem-me. E isso pesa-me na mente. Não gosto disto. Desta
solidão que me impuseste. E deves perguntar-me como ultrapasso esta dor…
…Esquece,
é um autêntico disparate acreditar que alguma vez me mostrarias preocupação…
Mas…
se o fizesses…não me acalmaria antes de falar, como faço sempre. Faria o que
qualquer rapariga da minha idade faria. Fugiria aos meus problemas e poria as
culpas nos outros. Que importa a coragem e a responsabilidade para encarar os
seus problemas? Uma pessoa como eu, sozinha com o meu cão e o meu avô lunático,
não tem outra hipótese. É fugir ou arder na fogueira.
E
fico deprimida. Porque a culpa é tua.
Já
escrevo esta carta há três dias. Mais gente passa aqui, mais gente me evita. Os
rumores espalham-se tão depressa que já muita gente conhece a rapariga do
prédio amarelo, que nunca saí de casa.
Quando
pego na caneta de tinta permanente, fico sempre a pensar no que irei escrever.
E depois as palavras fluem rapidamente, como se estivessem apenas escondidas
num canto obscuro da minha mente, à espera da oportunidade certa. É ai que
descubro que dificilmente irei melhorar. Preciso estupidamente de ti. Tanto que
tento afogar as minhas mágoas numa carta que acaba por ser hipoteticamente
endereçada a ti. E, desta vez, irei assiná-la no fim e livrar-me dela. Uma
lágrima caiu-me do olho, contaminando esta carta. Dando-me mais motivos para a
queimar. De eliminar este traço de fraqueza.
Porquê?
Porquê? Porquê? Aonde é que eu falhei? Que espectativas esperavas de mim? Se eu
soubesse, podia ser que melhorasse. Podia ser que talvez viesse a ser a menina
do papá. Mas não. Decidiste abandonar-me, deixando sozinha com o espirito da
minha falecida mãe, que me chama nos meus sonhos.”Rita, Rita!”. Mas ela não é
real. Tu és! E não estás aqui.
Deixas-te só e desamparada. Odeio-te por isso.
E
culpo-te por isso.
Adorei!
ResponderEliminarAdoro cartas (: