quinta-feira, 19 de julho de 2012

Tempestades & Marshmallows




"O tempo estava deprimido. As nuvens ameaçavam romper os céus de chuva grossa e até mesmo de granizo. O vento soprava fortemente contra os objetos no seu caminho, o seu som ecoando como o sopro de uma garrafa. O céu estava cinzento e tristonho, tal como a menina junto à janela, que pensava no seu pequeno dilema. Joana Salgueiro, mais conhecida como Joaninha, tinha um pedido a fazer. Uma prenda de aniversário atrasada. E, para tal, precisava de falar com os pais acerca disso. A sua sábia madrinha, Cristina, aconselhara falar com a sua mãe em dias maus, quando Laura Salgueiro bebia chocolate quente. Aí, ela ficava de bom humor e era a altura perfeita para falar com ela. Claro que Cristina ignorava que nem depois de todas as tempestades vinham bonanças. Afinal, os pais da pequena eram pessoas erróneas, por baixo da camada de verniz que os transpareciam como gente perfeita.
Estava sentada com as pernas cruzadas junto à varanda, fitando o exterior com profundo aborrecimento e tristeza. Suspirou, como um cachorrinho abandonado. Os seus grandes olhos verdes fitaram por cima do ombro a porta do escritório, onde a sua mãe se encerrara desde o meio-dia. Pensou no seu pai, que estava na sua empresa de engenhos eletrónicos - pelo que ela podia entender em tão tenra idade - trabalhando. Em vez de estar ali, com as duas. Talvez fosse por isso que a sua mãe estivesse completamente em baixo. Era suposto passarem o dia juntos, os três em família e agora um dos membros não estava presente.
A porta do escritório abriu-se e de lá saiu uma mulher loira. A sua mãe era bem conhecida pela sua imagem de mulher fina, com cabelo delicado, rosto de boneca e roupas da última moda. Mas, naquele dia, aparentava a mais comum das mulheres, os cabelos presos, cara isente de maquilhagem e usando roupas velhas.
A sua mãe passou a sala até à cozinha, sem dar conta da presença da filha, que a observava atentamente. Já na outra divisão, preparou uma bebida.
Joaninha levantou-se e aproximou-se da mãe com cautela, pensando naquilo que Cristina lhe contara. Viu que a mãe preparara o seu chocolate quente com costumava fazer e que tirara um saco com gomas brancas do armário. Ao ver a filha, não escondeu a surpresa:
-Querida… - Não sabendo o que dizer e não querendo manter o silêncio, Laura olhou para a sua caneca. – Queres um pouco?
Joaninha assentiu, pegando na caneca quente da mãe. Esta pegou num molhe de gomas brancas.
-Marshmallows? – Perguntou, exibindo um sorriso cansado. O rosto belo tentava esconder mágoa e a falta de sono, com insucesso. A pequena fez um olhar inquisitório.
-O que é isso? – Perguntou, com a sua vozinha de criança.
-Uma coisa que a Maria gosta muito. – Joaninha notou numa certa hesitação ao mencionar a irmã mais velha. Joaninha sabia que faziam anos desde que as duas se falavam. Tudo porque os maridos de ambas haviam-se pegado por assuntos que Joaninha ainda não tinha conhecimento, sendo muito nova para tal.
A pequena assentiu silenciosamente e deu um gole na bebida quente, observando a goma a afogar-se no mar castanho. Soube-lhe bem, o cacau bem forte e com um sabor doce excelente. Pelo menos para duas gulosas como elas as duas. Pensou por um bocadinho em silêncio, ansiando pelo momento certo para fazer o seu pedido à mãe. Laura preparou outro chocolate quente e mergulhou dois marshmallows na sua caneca.
Laura não disse nada durante muito tempo, perdida em pensamentos. Esquecera-se que a filha estava na mesma divisão que ela e que a observava atentamente.
Porém, paciência não era qualidade da senhorita Joaninha Adriana Salgueiro, que mordeu o lábio de tanto tempo esperar. Sem se aperceber, atirou logo o seu pedido à mãe, sem aviso prévio:
-Quero um mano. – Disse, o tom um pouco mandão.
 Laura não esperava que a filha falasse de repente e muito menos que dissesse aquelas palavras. Sobressaltada, deixou cair a caneca, o chocolate quente espalhando-se pelo chão de mármore branco e os dois solitários marshmallows jazidos ali no meio.
-O quê?
-Queria um irmãozinho. Ou uma irmãzinha. Para brincar comigo. – Respondeu a pequena, com seu ar inocente.
Joaninha estudou a cara da mãe, vendo as suas reações. Laura mostrara-se surpreendida com o pedido, mas havia algo mais mal camuflado naquelas expressões. Raiva.
Porquê, ela não sabia. Nunca soube, pois naquele momento o seu pai entrara em casa, arrastando pelo braço uma pasta de veludo preta. Pousou a gabardina no cabide e a pasta no chão. Joaninha ia ter com o pai para dar-lhe um abraço, porém a mãe travou-a, os seus olhos verdes sem qualquer brilho. Quando Pedro Salgueiro viu a filha, aproximou-se para a abraçar, até que reparou na esposa, atrás da menina. Joaninha não se atreveu a olhar para a mãe e descobrir que mensagem misteriosa eles passavam um ao outro. Tudo o que sabia fora que a mãe a mandara rispidamente para cima e, poucos minutos depois, podiam ouvir-se vozes exaltadas vindas da sala.
Ela chorou no seu travesseiro, temendo ser a culpada da zanga dos pais. Mas ela não adivinhava que o casal já tinha problemas fazia muito tempo e ela era a última culpada naquele problema gigante, que se alastrara como uma bola de neve.
No dia seguinte, encontrou a mãe na cozinha a comer os malditos marshmallows, os olhos vermelhos e a pele completamente pálida. Murmurava para si própria, como se tivesse uma conversa imaginária com alguém. Do pai, não havia sinal. A sua gabardina e a mala tinham desaparecido.
Laura olhou para a filha, e os seus olhos voltaram a ficar húmidos. Num segundo, abraçava a filha com todas as suas forças, como se a sua vida dependesse disso. E a pequena inocente fitou os marshmallows. Talvez tivesse sido aquilo que tivesse estragado tudo o que deveria correr bem. Mas, em qualquer dos casos, não devia ter prestado atenção ao que Cristina dizia. Sabia lá ela o que era viver com os seus pais."


BY: Ana Santos

domingo, 8 de julho de 2012

Filhas Perfeitas


      “Vou-me embora, mãe. Não pertenço aqui!”, disse-me ela um dia. Estava no quarto a preparar uma gigantesca mala de viagem quando eu entrei e perguntei-lhe o que estava a fazer. Os seus olhos azuis, ainda que traíssem alguma tristeza, brilhavam de extrema determinação. E essa determinação era aquilo que definia a minha filha mais nova, Luísa. E quando me deparava com aquela menina determinada, sentia uma parede a erguer-se, a separá-la de mim. E sentia-me um fracasso para com ela. Nunca adivinhara porque é que ela era tão determinada, ambiciosa e solitária. Aurora havia-me dito que ela não tinha uma boa relação com as filhas das minhas amigas, e eu nunca acreditei. Só agora me apercebia do quanto cega fora naquela altura, não vendo a minha menina afastada daquelas raparigas, tão sozinha, preparando o seu momento de fuga para a liberdade desde os seis anos.
      A minha mais velha estava casada e prestes a dar-me um neto. E a minha mais nova abria as suas asas para terras longínquas, para longe de mim. Sempre que pensava nisso, uma dor me afligia. E lembrava-me que eu era uma má mãe. Uma má mãe que criara filhas perfeitas.
      - Srª. Carvalho? – Alguém chamou-me. Todavia, eu não tirava os olhos da janela, onde via a minha mais nova a correr para o carro com a mala a arrastar pelo caminho. A irmã corria atrás, o máximo que podia com a sua tão avançada gravidez. E o meu coração deu um salto. Ela ia-se embora sem se despedir. Talvez se eu fosse atrás delas…
      - Srª. Carvalho? – Voltaram a chamar-me. E, desta vez, não as pude ignorar. Os seus rostos estavam demasiado sérios. Era uma reunião informal na minha casa de verão, onde eu deveria passar duas semanas com a minha família antes que o meu neto nascesse. Faziam quase dez anos desde que entrara na política e, desde aí, fora sempre a subir. Hoje, era imprescindível para o meu partido. Tinha aquilo que sempre sonhara desde que terminara os estudos. Tinha um cargo importante no Governo.
      Demasiado importante, pensei para mim própria ao ver Luísa a afastar-se. Tantos erros eu cometi no passado à custa do meu emprego e agora a única regalia daquele trabalho escapava-me das mãos como fumo.
      Notei vagamente que a minha grande amiga Sílvia não estava presente, ainda que eu lhe tivesse pedido pois não queria mergulhar em trabalho em plenas férias. E eu sabia porquê. Renata, a filha de Sílvia, era a rapariga mais insuportável que eu alguma vez vira. Era mimada, fútil, temperamental e tão manipuladora que até conseguiu fazer com a filha de uma outra amiga minha – inocente em idade jovem - se virasse para maus caminhos. Sílvia não tinha mãos a medir com aquela rapariga. E, naquele dia, a jovem havia plantado mais alguma semente maligna. Tão má que a mãe não estava presente num encontro importante do qual eu me queria ver livre. Tão importante que eu dava por mim a ver as minhas filhas a afastarem-se….
      Eles haviam continuado a conversa sem mim. E eu não podia importar-me menos com aquilo que discutiam. A economia do país era um problema de segundo plano naquele momento. Engoli em seco e dei um passo para trás, disposta a sair da sala e correr para juntos das minhas filhas.
      Todavia, a voz da minha secretária travou-me.
      - O secretário do Sr. Ministro da Economia mandou-me estes faxes com as assinaturas dos membros da assembleia. – Informou a jovem, perante os olhares sérios e um pouco aborrecidos que recebia, o meu incluído. 
      - Assim tão depressa? – Perguntou um dos homens, lentamente. A conversa não iria terminar ali. Eu retomei a minha atenção na janela, vendo Luísa a falar com a irmã, e o meu marido Jorge a aproximar-se delas. A conversa fora breve e eu soube que voltara a falhar quando vi o meu marido abraçar as nossas filhas lavadas em lágrimas e a entrar no carro, disposto a levar a nossa mais nova ao aeroporto. Aurora também entrou, antes de dirigir umas palavras para alguém que se encontrava a uns metros dela. Provavelmente o marido. Antes de o carro arrancar e partir, pude sentir os olhos de Luísa em mim, como se ela soubesse que eu a observava a partir da janela. Uma dolorosa mágoa perpétua trespassou as minhas entranhas.
      E, de certa forma, ao olhar para o lugar onde o carro de Luísa estivera estacionado, soube que tinha falhado. 
      Era tarde de mais.
      Falhei e assim perdi as minhas filhas perfeitas.
      Renata estava grávida, com apenas dezoito anos. E não sabia quem era o pai. Sílvia desabafava os problemas que tinha com a filha e as nossas amigas concordavam, transparecendo os seus próprios problemas e, por vezes, até desejando regressar atrás no tempo. Todavia, sempre que eu entrava, elas calavam-se de imediato, lançando-me olhares de pena e consolação. Porque elas sabiam aquilo que eu sabia. Estávamos em eleições e eu despedira-me. Arruinei a minha carreira quando a minha esperança de felicidade morrera num acidente de carro. Elas sabiam que as minhas filhas eram o folego do meu viver, o motivo por que eu era tão forte e determinada, tal como Luísa. E Aurora, tão esperta e sensata. As minhas filhas…
      Filhas perfeitas que falhei, ainda que as minhas amigas me dissessem o contrário. Por vezes, eu sentia que nunca falhara como mãe. Que, em comparação com as filhas delas, as minhas tornaram-se perfeitas por meu mérito. Mas eu sabia que o mérito ou era do pai, ou era delas próprias.
      Não tinha problemas com isso. Elas eram perfeitas. Filhas perfeitas que eu perdi. Se ao menos eu tivesse ido atrás delas…
      O meu genro brincava com a minha neta no jardim, os seus olhos traindo o sorriso luminoso que mostrava. Porque ele iria criar aquela menina sozinho. Aquela menina que era muito mais do que uma neta para mim. Era a escolha da minha filha. A vida de Aurora pela da sua filha. E eu não esperaria outra escolha da minha filha perfeita mais velha.
      Ao meu lado, o meu marido suspirou, enquanto observava os dois, o seu olhar perdido no horizonte. Os mesmos olhos determinados de Luísa, agora mortos e derrotados. As mãos dele seguravam a cadeira de rodas com uma força raivosa e eu sabia o que ele pensava. Que ele deveria ter morrido em vez delas. Antes isso do que as nossas filhas sem sopro e ele inválido.
      Sentei-me no colo dele e beijei-o suavemente, não querendo alastrar aqueles pensamentos obscuros, não querendo que aquela culpa de sobrevivente o tirasse de mim. Porque a culpada era eu. Deus dera-me algo poderoso e eu falhei, deixando-me apenas aquela atroz dor perpétua no peito. Tive duas filhas perfeitas mas deixei-as ir.
      Se ao menos eu tivesse ido atrás delas…

BY: Ana Santos

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Carta


      Já muitos anos se passaram. E nunca me dei ao trabalho de te escrever. Esta carta já tem destinatário, mas nunca serás tu. Talvez a lareira ou a sarjeta junto ao prédio. Mas nunca para ti. Porque tinha metade da minha altura atual quando percebi que era inútil te dizer o quer que seja. Nunca vens cá e quando vens, esperas ver outra pessoa. Outra pessoa que não é a tua filha. Quiseste tornar-me em algo que eu não era, mascarar-me com um semblante igual ao teu. Para que eu fosse um clone teu, sem cabeça nem personalidade própria.
      Abandonaste-me. A única coisa que me deixaste foi o teu nome. Disseste-me na cara que eu não era aquilo que esperavas, sem me dar uma explicação. Sem me deixares entender porquê. Fiquei a adivinhar. Anos passam-se e ainda desconheço a resposta.
      Talvez porque sou igual a ela. Os meus cabelos, a forma do rosto. De ti apenas restou o olhar determinado e destemido, como o meu avô sempre descreve. Peço perdão. Agora resta é eu realmente o desejar.
      Estou sempre aqui em cima, o mais longe possível da civilização. Deixaste-me sozinha e assim fiquei. O meu avô é maluco e deixa-me louca, mas não podia deixar de o amar. Ele mantem-me sã e acho que faz as suas maluqueiras para que eu me distraia e que não passe tanto tempo sozinha dentro de casa. Porque, por muito fortes e conselheiros que os espíritos sejam, eles nunca entenderão o meu problema. E nunca me ajudarão a ultrapassá-lo. E culpo-te por isso.
      Também sinto a falta dela. Mas, claro, nunca pensas nisso. Ela morreu e desenhaste uma linha a separar-nos sem me explicar o porquê. E isso deixa-me frustrada, porque não te posso ligar a contar os meus problemas, não posso chorar no teu ombro. Tenho que ser forte e suportar tudo sozinha, aquele peso nos ombros que só adultos carregam.
      Nunca me senti tão isolada como agora. Raparigas andam a passar aqui perto e olham-se com desdém. Porque sou estranha. Porque sou solitária. Não tenho ninguém com quem falar e não posso revelar estes pensamentos ao meu avô. Isso iria desanimá-lo e eu não toleraria tal cenário. Ele cuidou de mim quando tu não o fizeste, devo-lhe a felicidade que ele me prometeu. Mesmo que ela seja apenas uma mera fantasia. Que o meu temperamento volátil seja a única amostra de que eu avancei. De que a tua ausência já não me incomoda.
      Mas é claro que incomoda! Tenho catorze anos e não tenho pai. De ti, só tenho memórias de um homem que me tentou mudar e que, mal viu o fracasso, fugiu a sete pés como se eu fosse um brinquedo que se pudesse jogar fora após se fartarem.
      E, lá fora, todos me culpam por algo que eu não fiz. Sou desmoralizada e os poucos que não me odeiam, temem-me. E isso pesa-me na mente. Não gosto disto. Desta solidão que me impuseste. E deves perguntar-me como ultrapasso esta dor…
      …Esquece, é um autêntico disparate acreditar que alguma vez me mostrarias preocupação…
      Mas… se o fizesses…não me acalmaria antes de falar, como faço sempre. Faria o que qualquer rapariga da minha idade faria. Fugiria aos meus problemas e poria as culpas nos outros. Que importa a coragem e a responsabilidade para encarar os seus problemas? Uma pessoa como eu, sozinha com o meu cão e o meu avô lunático, não tem outra hipótese. É fugir ou arder na fogueira.
      E fico deprimida. Porque a culpa é tua. 
      Já escrevo esta carta há três dias. Mais gente passa aqui, mais gente me evita. Os rumores espalham-se tão depressa que já muita gente conhece a rapariga do prédio amarelo, que nunca saí de casa.
      Quando pego na caneta de tinta permanente, fico sempre a pensar no que irei escrever. E depois as palavras fluem rapidamente, como se estivessem apenas escondidas num canto obscuro da minha mente, à espera da oportunidade certa. É ai que descubro que dificilmente irei melhorar. Preciso estupidamente de ti. Tanto que tento afogar as minhas mágoas numa carta que acaba por ser hipoteticamente endereçada a ti. E, desta vez, irei assiná-la no fim e livrar-me dela. Uma lágrima caiu-me do olho, contaminando esta carta. Dando-me mais motivos para a queimar. De eliminar este traço de fraqueza.
      Porquê? Porquê? Porquê? Aonde é que eu falhei? Que espectativas esperavas de mim? Se eu soubesse, podia ser que melhorasse. Podia ser que talvez viesse a ser a menina do papá. Mas não. Decidiste abandonar-me, deixando sozinha com o espirito da minha falecida mãe, que me chama nos meus sonhos.”Rita, Rita!”. Mas ela não é real. Tu és! E não estás aqui.
      Deixas-te só e desamparada. Odeio-te por isso.
      E culpo-te por isso.

BY: Ana Santos

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Saudade

Saudade, palavra única derivada de um único país da velha Europa. Um sentimento melancólico causado pela ausência de alguém muito querido, assim ele dizia.
Muitas cabeças assentiram em acordo ao som das palavras do notário, umas fungando o nariz lamentavelmente em lenços de pano e outras limpando lágrimas um tanto exageradas. Sim, sentiriam saudades da sua irmã. Dela e do seu marido.
Muitos estavam ali presentes para ouvir o testamento da sua falecida irmã, mas ela apenas comparecera porque a sua consciência a mandara. Sentira a obrigação de tratar dos detalhes do funeral, do pequeno convívio que se sucedera na casa onde ela e a irmã viveram na sua juventude e de olhar pelas crianças. O tempo parecia ter abrandado durante as quarenta e oito horas que se seguiram desde que recebera o telefonema do hospital. O seu corpo deslizara lentamente pela parede, caindo no chão como um peso morto, o rosto sem expressão a não ser de dor genuína.
Claro que, para todos, ela detestava a irmã. Nunca se dera bem com ela. Tiveram a típica relação de irmãs, sempre discutindo acerca de tudo e mais alguma coisa. A única coisa que aparentavam ter em comum era o amor a coelhos. Sorriu levemente ao lembrar-se dos coelhinhos que o pai lhes arranjara e que elas faziam turnos para tomar conta. Um projecto a longo prazo que podia tê-las unido. Porém, isso não sucedeu. E, no fundo, ela sabia que nunca fora tão próxima da irmã quanto gostaria.
-“Eu, Patrícia Castro, e o meu marido José Leite…” – A voz do notório era fatigante, não achando melhor eufemismo, conseguindo apenas dilatar aquele aborrecimento incessante. – “…deixamos a guarda dos nossos filhos…” – E ali estava a parte que ela estava à espera. Para a sua consciência descansar e ela poder partir para Lisboa no próximo comboio, precisava saber quem ficaria com os sobrinhos. – “…À minha irmã Maria Amélia Castro.”
A plateia congelou. Mia engoliu em seco, perplexa. Várias cabeças tornaram-se para ela, os rostos contraídos em expressões de espanto e algum receio. Ofegando nervosamente, Mia olhou para os sobrinhos. Três rapazes e uma menina. Eles pareciam os únicos que não mostravam más emoções na decisão dos pais, mas talvez isso devesse ao facto de a morte dos progenitores ainda não ter integralmente entrado nas suas mentes jovens e inocentes. Não quando o mais velho tinha apenas onze anos.
O que é que a irmã estava a pensar quando escreveu aquele testamento? Estaria louca? Ela raramente via os sobrinhos, estando apenas presentes nas festas comemorativas. De resto, era como se Patrícia fosse a única filha de Joana Almeida e Filipe Castro.
Nunca fora muito próxima da irmã em vida. Aliás, desde a morte dos pais que as duas se tinham afastado. Todos achavam que a tragédia que as deixara órfãs iria uni-las, mas não foi o caso. Elas eram muito diferentes. Durante muito tempo, Mia fora muito ingénua e, com a morte dos pais, foi como se alguém tivesse rebentado o seu balão de brincar.
Arranjara todos os pretextos para sair da casa onde crescera, onde Patrícia teimava em ficar. Estudara numa faculdade fora da cidade natal e ajustara um emprego fixo em Lisboa. Só vinha ao Porto para visitar a família da irmã e a campa dos pais.
Sentiu uma lágrima a cair-lhe pelo rosto, enquanto os outros recuperavam do choque. Alguns contestaram a entrega de custódia, nomeadamente os avós paternos dos miúdos, mas de resto todos mantiveram-se calados. O silêncio de alguns, como a suas ex-amigas de infância e as próprias amigas dos pais, da irmã e do cunhado era constrangedor e de cortar à faca. Era como se elas soubessem da decisão de Patrícia em antemão. Mas não concordavam…
E nem ela concordava. Nunca fora mãe. Fugira sempre das responsabilidades que uma família impunha. Ela era a tia que se sentava num lugar extra nos dias de festa. Aquela que trazia presentes que as crianças detestavam, mas que eram bem-educadas para não lho dizer na cara. A maioria das vezes que via a irmã, não conseguia parar de discutir. Tanto que deixara de a visitar durante um ano inteiro. Até à semana anterior. Ela viera visitá-la a Lisboa, perguntar como ela estava, se precisava de dinheiro. E, quando deu por si, desabafava com Patrícia acerca de problemas no trabalho, nos insucessos românticos e nas frustrações que passava. Estranhamente, a irmã não revirou os olhos. Apenas sorriu.
-Cresceste. – Dissera ela. – És uma adulta. Tens agora problemas de adulto. E fico muito contente em saber como te desembaraçaste sozinha e te tornaste responsável.
Mia olhou para a sua chávena de chá, embaraçada.
-Por acaso, tive a tua ajuda. Se não me tivesses pago os estudos, nunca seria aquilo que sou hoje. É a ti que devo agradecer. Obrigada, irmã.
Duas últimas palavras e, uma semana depois, a sua irmã morria num acidente de carro juntamente com o marido, não antes sem alterar o testamento. De entregar à irmã mais nova a custódia dos seus quatro filhos, o mais novo ainda um bebé de treze meses.
As pessoas começaram a afastar-se, muitas comentando a ridícula ideia de que ela seria capaz de cuidar de quatro crianças que mal via. Para não falar do ódio que tinha à irmã.
Mas isso era mentira! Ela amava a irmã. Apenas era muito diferente dela. Se a odiava, que aperto era aquele que ela sentia? Aquela sensação de que perdera algo muito mais importante que uma carreira no mundo do trabalho? Aquela sensação de nostalgia, em que não conseguia deixar de se lembrar de quando elas tomavam conta de coelhos, os pais observando ao longe, com enormes sorrisos transplantados nos rostos?
Ela limpou as lágrimas e olhou para os sobrinhos, que a fitavam tristemente. Dobrou atenção na menina, a única com os olhos cinzentos da irmã. E sorriu. Tomaria conta deles, tal como Patrícia tomara conta dela. Faria aquele esforço. Porque a irmã confiava nela. E também porque estava unida a aqueles miúdos com algo mais que os laços de sangue.
Melancolia causa pela perda do seu sorriso transparente e dos seus olhos expressivos. Saudade. 

BY: Ana Santos

sábado, 16 de junho de 2012

Amarelo e Preto

- A menina Sampaio sofreu um choque muito grave. Corre risco de sofrer uma severa depressão e…
As palavras calmas do psicólogo morreram na minha mente. Eu vagueava por cima das nossas cabeças, como que apoiada no tecto do gabinete limpo e organizado do homem.
Ao meu lado, a minha mãe tremia ansiosamente, bebendo cada palavra do psicólogo como se este tivesse o dom de prever o futuro.
Naquele momento, eu só pensava em coisas mórbidas. Prédios de altos andares, quedas, vidros espatifados, sangue… muito sangue…
Meses antes, teria tremido de nojo ao imaginar tais cenas. Agora não. Agora até parecem cenas do dia-a-dia. E até têm a sua graça. Quem diria que a tonta, ingénua e alegre Madalena Sampaio conseguia ter tão forte humor negro? A mesma menina que brincava com contas e bonecas de porcelana e que se ria das partidas que os rapazes pregavam à minha grande amiga Sara, a maria-rapaz da escola. Se me tivessem perguntado meses antes, a resposta seria óbvia. Agora, ainda consigo surpreender a pessoa mais céptica.
A minha professora já não reclama de eu não fazer os trabalhos de casa ou de chegar atrasada. Em vez disso, manda-me um olhar de pena, como se tivesse sido eu a atirar-me do prédio abaixo. Como se tivesse sido eu a morrer…
A minha mãe mandou-me fechar as cortinas do quarto. Ainda que eu dormisse no primeiro andar e, se saltasse, a queda mal me aleijaria, ela teme que eu tenha ideias. Como se isso fosse possível. Tinha coisas mais importantes em que pensar, em vez de tentar por fim à minha própria vida.
Porque é que ela o fez? O nosso mundo sempre fora alegre, amarelo. E com tons de rosa. Conheci-a desde criança, sabia tudo sobre ela. Já dormi tantas vezes na casa dela, que até tinha lá uma cama extra, pronta para me receber. E era o mesmo na minha casa.
E, naquele dia, tinha ido lá dormir. Faláramos do teste de inglês, ao qual voltei a chumbar, rapazes, uma pulseira que a mãe lhe tinha dado, comida… enfim, coisas de pré-adolescentes. Fui à casa de banho. Quando voltei, ela saltou. Era como se ela tivesse esperado pelo momento em que eu sairia da casa de banho e olhasse para ela nos olhos e visse o medo, a vergonha, a tristeza, a despedida…
Para mim, não fazia sentido que Sara risse despreocupadamente num momento e no noutro saltasse da sua própria varanda. Não tinha qualquer sentido.  Talvez ela me mentira. Talvez cada risada dela escondia uma nuvem negra nos olhos ou nas suas expressões. Uma nuvem que eu, sendo tão ingénua e estúpida, não me apercebi.
-Madalena? – Ouvi a minha mãe chamar. Eu virei-me para ela, tentando não mostrar a minha distracção. Mas o canalha do psicólogo tinha-se apercebido e sorrira-me calorosamente. Apeteceu-me atirar-lhe com o pisa-papéis à cabeça por me oferecer aquele sorriso, tão cheio de pena e compreensão. Mas ele não compreendia. Eu tinha visto a minha melhor amiga suicidar-se! As coisas nunca mais seriam as mesmas, por muito que ele dissesse o contrário. Porque eu tinha mudado.
E pior, nem me tinha apercebido da mudança até agora. Já não consigo sorrir como antigamente. Algo dentro de mim mudou. O rosa desapareceu.
E, com o tempo, também desaparecia o amarelo…
A minha mãe perguntou-me o que eu queria para jantar. Eu encolhi os ombros, sem responder. Ela mordeu o lábio e, olhando em meu redor, entrou no supermercado apressadamente. Eu fiquei cá fora, admirando o muro da rua oposta. Lá, postava um gato malhado com uma pequena ferida na pata. Parecia confuso. Pois bem, eu também estava confusa. Por muito estúpida que seja, eu conseguiria saber se a Sara tinha problemas. Eu saberia se ela tinha algum motivo para pôr termo à vida. Mas não havia nada. Tudo corria bem. Era o nosso mundo amarelo e cor-de-rosa.
Ela chorara antes de saltar. E sussurrara uma única palavra antes de a gravidade a levar para longe de nós, para nunca mais a vermos. Até hoje, ainda não conseguia compreender o significado.
Ajuda-me.
Não contei nada disto à polícia. Fingi-me chocada, mas a verdade era que o choque tinha-se ido quando ouvira o choque de um corpo no carro estacionado à porta. Eu apoiara-me na varanda, vendo o corpo da minha amiga sendo encontrado pelo porteiro e pelo dono do carro, que chamou uma ambulância. Eu permanecia imóvel, a pensar naquilo que vira e naquilo que ela dissera. Não estava em mim naquela noite. Nem nunca mais estarei.
O psicólogo havia dito que, com a depressão, corra risco em sofrer um transtorno obsessivo-compulsivo. Ele estava errado. Já tinha este transtorno. Sempre que via sangue, lembrava-me da Sara e na ausência de choque. Só sentia dor. E eu tornei-me algo semelhante a masoquista. Quis-me agarrar à última memória que tinha de Sara, realizando ações que assustaram os meus pais e familiares. Até o meu irmão mais velho, Francisco, tremia sempre que me via a olhar para uma faca de serra.
O problema estava… é que eles não me entendem. Querem-me curar. Mas não o podem fazer. Algo matou Sara. Algo forçou a minha melhor amiga a saltar da varanda. Algo que me queria atingir.
E conseguiu. O amarelo foi-se.
Ficou tudo preto.

BY: Ana Santos