domingo, 8 de julho de 2012

Filhas Perfeitas


      “Vou-me embora, mãe. Não pertenço aqui!”, disse-me ela um dia. Estava no quarto a preparar uma gigantesca mala de viagem quando eu entrei e perguntei-lhe o que estava a fazer. Os seus olhos azuis, ainda que traíssem alguma tristeza, brilhavam de extrema determinação. E essa determinação era aquilo que definia a minha filha mais nova, Luísa. E quando me deparava com aquela menina determinada, sentia uma parede a erguer-se, a separá-la de mim. E sentia-me um fracasso para com ela. Nunca adivinhara porque é que ela era tão determinada, ambiciosa e solitária. Aurora havia-me dito que ela não tinha uma boa relação com as filhas das minhas amigas, e eu nunca acreditei. Só agora me apercebia do quanto cega fora naquela altura, não vendo a minha menina afastada daquelas raparigas, tão sozinha, preparando o seu momento de fuga para a liberdade desde os seis anos.
      A minha mais velha estava casada e prestes a dar-me um neto. E a minha mais nova abria as suas asas para terras longínquas, para longe de mim. Sempre que pensava nisso, uma dor me afligia. E lembrava-me que eu era uma má mãe. Uma má mãe que criara filhas perfeitas.
      - Srª. Carvalho? – Alguém chamou-me. Todavia, eu não tirava os olhos da janela, onde via a minha mais nova a correr para o carro com a mala a arrastar pelo caminho. A irmã corria atrás, o máximo que podia com a sua tão avançada gravidez. E o meu coração deu um salto. Ela ia-se embora sem se despedir. Talvez se eu fosse atrás delas…
      - Srª. Carvalho? – Voltaram a chamar-me. E, desta vez, não as pude ignorar. Os seus rostos estavam demasiado sérios. Era uma reunião informal na minha casa de verão, onde eu deveria passar duas semanas com a minha família antes que o meu neto nascesse. Faziam quase dez anos desde que entrara na política e, desde aí, fora sempre a subir. Hoje, era imprescindível para o meu partido. Tinha aquilo que sempre sonhara desde que terminara os estudos. Tinha um cargo importante no Governo.
      Demasiado importante, pensei para mim própria ao ver Luísa a afastar-se. Tantos erros eu cometi no passado à custa do meu emprego e agora a única regalia daquele trabalho escapava-me das mãos como fumo.
      Notei vagamente que a minha grande amiga Sílvia não estava presente, ainda que eu lhe tivesse pedido pois não queria mergulhar em trabalho em plenas férias. E eu sabia porquê. Renata, a filha de Sílvia, era a rapariga mais insuportável que eu alguma vez vira. Era mimada, fútil, temperamental e tão manipuladora que até conseguiu fazer com a filha de uma outra amiga minha – inocente em idade jovem - se virasse para maus caminhos. Sílvia não tinha mãos a medir com aquela rapariga. E, naquele dia, a jovem havia plantado mais alguma semente maligna. Tão má que a mãe não estava presente num encontro importante do qual eu me queria ver livre. Tão importante que eu dava por mim a ver as minhas filhas a afastarem-se….
      Eles haviam continuado a conversa sem mim. E eu não podia importar-me menos com aquilo que discutiam. A economia do país era um problema de segundo plano naquele momento. Engoli em seco e dei um passo para trás, disposta a sair da sala e correr para juntos das minhas filhas.
      Todavia, a voz da minha secretária travou-me.
      - O secretário do Sr. Ministro da Economia mandou-me estes faxes com as assinaturas dos membros da assembleia. – Informou a jovem, perante os olhares sérios e um pouco aborrecidos que recebia, o meu incluído. 
      - Assim tão depressa? – Perguntou um dos homens, lentamente. A conversa não iria terminar ali. Eu retomei a minha atenção na janela, vendo Luísa a falar com a irmã, e o meu marido Jorge a aproximar-se delas. A conversa fora breve e eu soube que voltara a falhar quando vi o meu marido abraçar as nossas filhas lavadas em lágrimas e a entrar no carro, disposto a levar a nossa mais nova ao aeroporto. Aurora também entrou, antes de dirigir umas palavras para alguém que se encontrava a uns metros dela. Provavelmente o marido. Antes de o carro arrancar e partir, pude sentir os olhos de Luísa em mim, como se ela soubesse que eu a observava a partir da janela. Uma dolorosa mágoa perpétua trespassou as minhas entranhas.
      E, de certa forma, ao olhar para o lugar onde o carro de Luísa estivera estacionado, soube que tinha falhado. 
      Era tarde de mais.
      Falhei e assim perdi as minhas filhas perfeitas.
      Renata estava grávida, com apenas dezoito anos. E não sabia quem era o pai. Sílvia desabafava os problemas que tinha com a filha e as nossas amigas concordavam, transparecendo os seus próprios problemas e, por vezes, até desejando regressar atrás no tempo. Todavia, sempre que eu entrava, elas calavam-se de imediato, lançando-me olhares de pena e consolação. Porque elas sabiam aquilo que eu sabia. Estávamos em eleições e eu despedira-me. Arruinei a minha carreira quando a minha esperança de felicidade morrera num acidente de carro. Elas sabiam que as minhas filhas eram o folego do meu viver, o motivo por que eu era tão forte e determinada, tal como Luísa. E Aurora, tão esperta e sensata. As minhas filhas…
      Filhas perfeitas que falhei, ainda que as minhas amigas me dissessem o contrário. Por vezes, eu sentia que nunca falhara como mãe. Que, em comparação com as filhas delas, as minhas tornaram-se perfeitas por meu mérito. Mas eu sabia que o mérito ou era do pai, ou era delas próprias.
      Não tinha problemas com isso. Elas eram perfeitas. Filhas perfeitas que eu perdi. Se ao menos eu tivesse ido atrás delas…
      O meu genro brincava com a minha neta no jardim, os seus olhos traindo o sorriso luminoso que mostrava. Porque ele iria criar aquela menina sozinho. Aquela menina que era muito mais do que uma neta para mim. Era a escolha da minha filha. A vida de Aurora pela da sua filha. E eu não esperaria outra escolha da minha filha perfeita mais velha.
      Ao meu lado, o meu marido suspirou, enquanto observava os dois, o seu olhar perdido no horizonte. Os mesmos olhos determinados de Luísa, agora mortos e derrotados. As mãos dele seguravam a cadeira de rodas com uma força raivosa e eu sabia o que ele pensava. Que ele deveria ter morrido em vez delas. Antes isso do que as nossas filhas sem sopro e ele inválido.
      Sentei-me no colo dele e beijei-o suavemente, não querendo alastrar aqueles pensamentos obscuros, não querendo que aquela culpa de sobrevivente o tirasse de mim. Porque a culpada era eu. Deus dera-me algo poderoso e eu falhei, deixando-me apenas aquela atroz dor perpétua no peito. Tive duas filhas perfeitas mas deixei-as ir.
      Se ao menos eu tivesse ido atrás delas…

BY: Ana Santos

8 comentários:

  1. Obrigada antes de mais :') Quanto ao heterónimo, não foi por nada de especial, foi o primeiro nome que me veio á cabeça, talvez porque no meu círculo de amigos não eiste nenhuma e assim é menos provavel que alguém desconfie. Mas não sei porque escolhi, foi um acaso (:

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  2. Por acaso identifico-me bastante com a descrição do nome, ironia do destino :)

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  3. É difícil ser forte tendo de o deixar para trás ... O problema é que ele diz que não aredita em relações á distância e eu mesmo dizendo-lhe que não vou desistir de nós, não posso fazer nada para mudar as coisas.

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  4. Gostei mesmo, continua e boa sorte para este lançamento por estes lados (:

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  5. Nao vou desistir dele, porque sei que o medo dele é que não dê certo e que com a distãncia eu o desiluda. Vou mostrar-lhe que isso não vai acontecer e que a única coisa que eu o vou fazer sentir é felicidade e orgulho.

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  6. muito obrigada linda, espero que gostes :)

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