“Vou-me embora, mãe. Não pertenço aqui!”, disse-me ela um
dia. Estava no quarto a preparar uma gigantesca mala de viagem quando eu entrei
e perguntei-lhe o que estava a fazer. Os seus olhos azuis, ainda que traíssem
alguma tristeza, brilhavam de extrema determinação. E essa determinação era
aquilo que definia a minha filha mais nova, Luísa. E quando me deparava com
aquela menina determinada, sentia uma parede a erguer-se, a separá-la de mim. E
sentia-me um fracasso para com ela. Nunca adivinhara porque é que ela era tão
determinada, ambiciosa e solitária. Aurora havia-me dito que ela não tinha uma
boa relação com as filhas das minhas amigas, e eu nunca acreditei. Só agora me
apercebia do quanto cega fora naquela altura, não vendo a minha menina afastada
daquelas raparigas, tão sozinha, preparando o seu momento de fuga para a
liberdade desde os seis anos.
A minha mais velha estava casada e prestes a dar-me um
neto. E a minha mais nova abria as suas asas para terras longínquas, para longe
de mim. Sempre que pensava nisso, uma dor me afligia. E lembrava-me que eu era
uma má mãe. Uma má mãe que criara filhas perfeitas.
- Srª. Carvalho? – Alguém chamou-me. Todavia, eu não
tirava os olhos da janela, onde via a minha mais nova a correr para o carro com
a mala a arrastar pelo caminho. A irmã corria atrás, o máximo que podia com a
sua tão avançada gravidez. E o meu coração deu um salto. Ela ia-se embora sem
se despedir. Talvez se eu fosse atrás delas…
- Srª. Carvalho? – Voltaram a chamar-me. E, desta vez, não
as pude ignorar. Os seus rostos estavam demasiado sérios. Era uma reunião informal na minha casa de verão, onde eu deveria passar duas semanas com a minha
família antes que o meu neto nascesse. Faziam quase dez anos desde que entrara
na política e, desde aí, fora sempre a subir. Hoje, era imprescindível para o
meu partido. Tinha aquilo que sempre sonhara desde que terminara os
estudos. Tinha um cargo importante no Governo.
Demasiado importante, pensei para mim própria ao ver Luísa a afastar-se.
Tantos erros eu cometi no passado à custa do meu emprego e agora a única
regalia daquele trabalho escapava-me das mãos como fumo.
Notei vagamente que a minha grande amiga Sílvia não
estava presente, ainda que eu lhe tivesse pedido pois não queria mergulhar em
trabalho em plenas férias. E eu sabia porquê. Renata, a filha de Sílvia, era a
rapariga mais insuportável que eu alguma vez vira. Era mimada, fútil,
temperamental e tão manipuladora que até conseguiu fazer com a filha de uma
outra amiga minha – inocente em idade jovem - se virasse para maus caminhos.
Sílvia não tinha mãos a medir com aquela rapariga. E, naquele dia, a jovem
havia plantado mais alguma semente maligna. Tão má que a mãe não estava
presente num encontro importante do qual eu me queria ver livre. Tão importante
que eu dava por mim a ver as minhas filhas a afastarem-se….
Eles haviam continuado a conversa sem mim. E eu não podia
importar-me menos com aquilo que discutiam. A economia do país era um problema
de segundo plano naquele momento. Engoli em seco e dei um passo para trás, disposta a sair da
sala e correr para juntos das minhas filhas.
Todavia, a voz da minha secretária travou-me.
- O secretário do Sr. Ministro da Economia mandou-me estes
faxes com as assinaturas dos membros da assembleia. – Informou a jovem, perante
os olhares sérios e um pouco aborrecidos que recebia, o meu incluído.
- Assim tão depressa? – Perguntou um dos homens,
lentamente. A conversa não iria terminar ali. Eu retomei a minha atenção na
janela, vendo Luísa a falar com a irmã, e o meu marido Jorge a aproximar-se delas.
A conversa fora breve e eu soube que voltara a falhar quando vi o meu marido
abraçar as nossas filhas lavadas em lágrimas e a entrar no carro, disposto a
levar a nossa mais nova ao aeroporto. Aurora também entrou, antes de dirigir
umas palavras para alguém que se encontrava a uns metros dela. Provavelmente o
marido. Antes de o carro arrancar e partir, pude sentir os olhos de Luísa em
mim, como se ela soubesse que eu a observava a partir da janela. Uma dolorosa
mágoa perpétua trespassou as minhas entranhas.
E, de certa forma, ao olhar para o lugar onde o carro de Luísa
estivera estacionado, soube que tinha falhado.
Era tarde de mais.
Falhei e assim perdi as minhas filhas perfeitas.
Renata estava grávida, com apenas dezoito
anos. E não sabia quem era o pai. Sílvia desabafava os problemas que tinha com
a filha e as nossas amigas concordavam, transparecendo os seus próprios
problemas e, por vezes, até desejando regressar atrás no tempo. Todavia, sempre
que eu entrava, elas calavam-se de imediato, lançando-me olhares de pena e
consolação. Porque elas sabiam aquilo que eu sabia. Estávamos em eleições e eu
despedira-me. Arruinei a minha carreira quando a minha esperança de felicidade
morrera num acidente de carro. Elas sabiam que as minhas filhas eram o folego
do meu viver, o motivo por que eu era tão forte e determinada, tal como Luísa. E
Aurora, tão esperta e sensata. As minhas filhas…
Filhas perfeitas
que falhei, ainda que as minhas amigas me dissessem o contrário. Por vezes, eu
sentia que nunca falhara como mãe. Que, em comparação com as filhas delas, as
minhas tornaram-se perfeitas por meu mérito. Mas eu sabia que o mérito ou era
do pai, ou era delas próprias.
Não tinha problemas com isso. Elas eram perfeitas. Filhas
perfeitas que eu perdi. Se ao menos eu tivesse ido atrás delas…
O meu genro brincava com a minha neta no jardim, os seus
olhos traindo o sorriso luminoso que mostrava. Porque ele iria criar aquela
menina sozinho. Aquela menina que era muito mais do que uma neta para mim. Era
a escolha da minha filha. A vida de Aurora pela da sua filha. E eu não
esperaria outra escolha da minha filha perfeita mais velha.
Ao meu lado, o meu marido suspirou, enquanto observava os
dois, o seu olhar perdido no horizonte. Os mesmos olhos determinados de Luísa,
agora mortos e derrotados. As mãos dele seguravam a cadeira de rodas com uma
força raivosa e eu sabia o que ele pensava. Que ele deveria ter morrido em vez
delas. Antes isso do que as nossas filhas sem sopro e ele inválido.
Sentei-me no colo dele e beijei-o suavemente, não
querendo alastrar aqueles pensamentos obscuros, não querendo que aquela culpa
de sobrevivente o tirasse de mim. Porque a culpada era eu. Deus dera-me algo
poderoso e eu falhei, deixando-me apenas aquela atroz dor perpétua no peito.
Tive duas filhas perfeitas mas deixei-as ir.
Se ao menos eu tivesse
ido atrás delas…
Obrigada antes de mais :') Quanto ao heterónimo, não foi por nada de especial, foi o primeiro nome que me veio á cabeça, talvez porque no meu círculo de amigos não eiste nenhuma e assim é menos provavel que alguém desconfie. Mas não sei porque escolhi, foi um acaso (:
ResponderEliminarPor acaso identifico-me bastante com a descrição do nome, ironia do destino :)
ResponderEliminarAdorei ;o nada mais a dizer
ResponderEliminarObrigado ;)
EliminarÉ difícil ser forte tendo de o deixar para trás ... O problema é que ele diz que não aredita em relações á distância e eu mesmo dizendo-lhe que não vou desistir de nós, não posso fazer nada para mudar as coisas.
ResponderEliminarGostei mesmo, continua e boa sorte para este lançamento por estes lados (:
ResponderEliminarNao vou desistir dele, porque sei que o medo dele é que não dê certo e que com a distãncia eu o desiluda. Vou mostrar-lhe que isso não vai acontecer e que a única coisa que eu o vou fazer sentir é felicidade e orgulho.
ResponderEliminarmuito obrigada linda, espero que gostes :)
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